“De fato, grande fonte de lucro é a piedade com o
contentamento.”
(1 Timóteo 6.6)
É inegável que a teologia chamada “da
prosperidade” tem angariado grande exposição em nossos dias. De modo que boa
parte daquilo que se pretende dizer sobre assuntos óbvios como providência,
herança e cuidado divino, deparam-se com algum tipo de explicação que remeta a
doutrina da prosperidade e o seu mau uso desses temas, como que se, de alguma
forma não houvesse no corpo do ensinamento cristão, ou na própria bíblia uma leitura
salutar a fazer sobre esses pontos, sem se envolver com a abordagem dessa
teologia.
Este texto não busca dar audiência a essa
doutrina, não porque não julgue importante refutá-la, mas porque se preocupa em
expor o assunto tendo espaço suficiente para que o leitor faça as devidas
ponderações tendo uma fonte segura e expositiva em que se basear quando reflete
sobre a vida cristã, do ponto de vista do contentamento que é segundo a
piedade. Esta é a única razão aqui para que se evite o tema, algo que pode ser
feito em outra oportunidade, querendo o Senhor nos permitir.
O texto bíblico proposto, 1 Timóteo 6.6, encontra-se
em uma seção dedicada ao aconselhamento do apóstolo sobre aos falsos mestres ao
jovem ministro Timóteo. Nessa seção da carta, Paulo admoesta Timóteo a não
permitir a influência de falsos ensinos na igreja de Cristo (v.3), condenando
veemente a conduta daqueles que assim procedem, afirmando que os mesmos o fazem
por motivos interesseiros (vv.4-5), além do quê, fazem uso indevido da piedade,
transmutando seus efeitos benéficos em prol do lucro, algo totalmente indevido,
da perspectiva da objetividade do Evangelho. O texto que nos propomos a
refletir tem sua condição associada ao correto emprego da piedade, onde o
apóstolo defende que não é possível pensar em piedade sem considerar o
contentamento, uma vez que esse se refere ao cuidado paternal do Senhor, que
cuida dos seus, a despeito das situações adversas. No texto subsequente (v.7),
o apóstolo manifesta a condição que somos introduzidos nesse mundo, ou seja,
viemos sem nada e naturalmente não levaremos absolutamente nada físico para
onde vamos, seja para a recompensa, seja para a condenação. O verso 8 realça a
disposição de todo crente genuíno a esse contentamento, fica claro aqui a
satisfação em fazer parte do propósito divino, ainda que isso custe algumas
restrições, o cristão deve ser dar por satisfeito, entendendo que essa é a
vontade de Deus, que nada o impropera, mas que o supre em suas necessidades
mais básicas no desempenho da obra do Senhor. Finalizando o apóstolo demonstra
a condição daqueles que desejam o dinheiro e o lucro, não somente aqueles que
são chamados ao ministério, mas também traça alguns princípios gerais que
acometem tais pessoas (v.9), terminando com uma conclusão lógica e esperada de
tal empreendimento, havendo até mesmo muitos que não mais mantinham sua fé e
estavam, consequentemente, desviados do evangelho, em razão da cobiça.
A palavra que o apóstolo utiliza aqui em 1
Timóteo 6.6 para piedade é εὐσέβεια que é apropriadamente traduzida por piedade. Na versão
Revista e Atualizada a palavra piedade aparece em 1 Timóteo 9 vezes (2.2; 3.16; 4.7;
4.8; 5.4; 6.3; 6.5; 6.6; 6.11),
sendo que apenas em 4.8 εὐσέβεια reaparece, num contexto onde Paulo defende que a piedade é
condutora e fiadora de promessas reais e certas.
É notório o contraste entre a prática mantida
pelos enganadores e embusteiros quanto ao evangelho e a prática do genuíno
ministro de Cristo quanto ao mesmo. Enquanto que os enganadores fazem uso do
rebanho, usufruindo deles sua manutenção nababesca, o genuíno ministro de
Cristo, empreende seu ministério na piedade e contentamento. Esse contraste
permite ao observador medir o nível de interesse das duas classes propostas,
tendo o exemplo de verdadeiro ministro na pessoa do próprio apóstolo, que uma
vez que também se afadigava a esse evangelho, podia admoestar a todos que se
achegam a esse ofício qual deveria ser a conduta dos novos ministros.
Quando o apóstolo considera a piedade como
fonte de lucro tem em vista não somente as virtudes que esse tipo de vida
proporciona, mas também nos conduz a considerarmos os efeitos de uma vida que
tem a piedade como padrão axiomático para todo cristão. Nenhum cristão genuíno
deve ter outra pretensão, com relação à objetividade de sua vida que não seja a
piedade como referência. Porém, os enganadores pérfidos estão mais interessados
no lucro econômico do que esse estilo de vida pode proporcionar.
Não é de hoje que a religião tem sido
utilizada de modo a garantir a lucratividade. Já nas páginas das Escrituras
temos conhecimento de homens como os filhos do sacerdote Eli, que faziam uso
das ofertas consagradas pelo povo de maneira reprovável (2 Sm 2.12-17) e Simão,
mágico, que tentava conseguir o dom do Espírito Santo de modo a usufruir do
mesmo favoravelmente (At. 8.9-13). Posteriormente, a igreja de Roma se
favoreceu da ignorância do povo a fim de lucrar com indulgências, penitências e
outras superstições que em troca de uma obediência proposta, buscavam algum
favor divino. Papas e prelados desse segmento vivem os frutos desse disparate
até os dias de hoje, desconsiderando a pobreza de muitos de seus seguidores e
vivendo contrário a aquilo que se é exigido nas Escrituras. Os protestantes por
sua vez são, talvez, os responsáveis pelas maiores distorções a esse respeito. Afinal
a teologia da prosperidade é embrionária de suas fileiras e não de seitas mais
heréticas, que nunca desenvolveram tal conceito anómalo.
A questão que envolve a teologia da
prosperidade é mais complexa do que se nos é permitido nossa análise, tão
parcamente limitada aqui. Tem a ver com erros exegéticos grosseiros, mas também
faz uso da tradição protestante, como o conceito de providência e eleição.
Alguns o relacionam ao conceito proposto nos modelos econômicos que foram
desenvolvidos em países protestantes como o capitalismo, além de uma enormidade
de falsas expectativas blasfêmicas que obscurecem o real sentido do cuidado
divino com Seus eleitos. Seja como for, é certo que muito do que se propõe por
tal teologia está longe de ser o ensino real fornecido pelas Escrituras.
O texto então mostra um conceito mais elevado
da visão referente ao cuidado divino. O lucro aqui é visto com um benefício,
sobretudo espiritual e não pertencente ao merecimento dessa época. Tem, como
tal, uma conotação graciosa, sem mérito, sem pretensão. Fia-se na misericórdia
e no cuidado divino, é antes de tudo a efetuação da benevolência de um Deus
santo que nos alcança sem nenhum favor próprio existente em nós mesmos. Isso
sim é lucrativo, pois vê a vida como a obra empreendida por um Deus santo que
nos resgata da condenação, aproximando-nos de Sua comunhão paternal.
A piedade nos é garantia de padrão específico
da vida daqueles que já não mais veem essa vida como pertencentes a si
próprios. Suas vidas já não mais lhe pertencem, de modo que veem as conquistas,
as vitórias de si próprios como a manifestação do favor divino, que
bondosamente os alcança sem nenhum merecimento, apenas porque Deus quis
infundir tais bênçãos, de maneira soberana e voluntária, não havendo nada que
condicione os tais para tão grandes benefícios. A piedade genuína é um padrão
vivencial experimentado por outros santos do passado e mais claramente
manifestado na própria vida do Filho de Deus, padrão único e absoluto desse
povo que entende a vida como algo a glorificar a Deus e não como algo que
atinge interesses transitórios. Partindo desse entendimento, toda e qualquer
cosmovisão que despreze esses conceitos revelacionais, são, por assim dizer,
espúrios. Mesmo o aclamado “sonho americano” ou a propensa teologia da
prosperidade, não fazem jus ao legado escriturístico, que sem dúvida, expande a
ideia da doação e da entrega do crente a conceitos muito maiores aos que vemos
nas cosmovisões empreendidas por muitos grupos protestantes hoje em dia.
Finalmente entendo que o contentamento não é
uma condição muito cômoda a presente condição humana neste mundo. Não somos havidos
por conceitos que nos rebaixem a níveis de sujeição absoluta, como é o caso
aqui. Somos, por natureza, inclinados a expectativas superiores que dão conta
de nossa capacidade acima das demais, do nosso bem desejado, de condições que
nos fazem sonhar com objetivos rentáveis e acalentadores. O contentamento
caminha na contramão de tudo isso. Ele é humilhante para alguém que espera
tanto de si mesmo. Que deseja sobressair-se em um mundo de iguais, que deseja o
status quo mais adequado e
confortável. Grande parte das frustrações ocorridas hoje tem como fonte o
descontentamento com algo que não se conseguiu alcançar, ou seja, tem a ver
justamente com o conceito contrário daquilo que nos propõe o apóstolo aqui.
Muitos, mesmo cristãos, estão frustrados por não terem alcançado algo, por não
terem o devido reconhecimento, mostrando claramente que não entenderem o
conceito defendido pelo apóstolo.
Se contentar com o que tem não é a mesmo que
desistir. Muito pelo contrário, tem a ver com a sujeição ao plano eterno de
Deus, que nos garante sua assistência misericordiosa, nos livrando das
frustrações, mas trabalhando a dor, a pobreza, a doença e uma série de circunstâncias
que devemos viver, mesmo que não achemos a melhor escolha para nós. Deus nos
ensina a agradecê-lo por tudo o que estamos vivendo, isso sob qualquer situação.
Ele nos mostra que não deveríamos ousar perguntar o porquê das razões que Ele
determinou para nós. Se Ele assim o quis, certamente é o melhor. Não busquemos
outro sentimento a não ser o contentamento que é derivado de uma vida piedosa.
Nada tem mais poder do que um crente que aceita a graça de Deus para com sua
vida. Em dias onde a cobiça o desejo, as motivações de tantos são tão
prementes, os verdadeiros crentes anseiam fazer, justamente aquilo que o Senhor
designou. Que seja essa a nossa real intenção nesses dias, que ao invés de
buscarmos contentamento em nossas realizações o busquemos nos grandes feitos do
nosso Deus, que realiza Sua obra em nós de maneira sábia e soberana. Deus nos
ajude a compreender seus planos a nós quanto a este particular.
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