quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A Piedade e o Contentamento cristão

“De fato, grande fonte de lucro é a piedade com o contentamento.”
(1 Timóteo 6.6)

É inegável que a teologia chamada “da prosperidade” tem angariado grande exposição em nossos dias. De modo que boa parte daquilo que se pretende dizer sobre assuntos óbvios como providência, herança e cuidado divino, deparam-se com algum tipo de explicação que remeta a doutrina da prosperidade e o seu mau uso desses temas, como que se, de alguma forma não houvesse no corpo do ensinamento cristão, ou na própria bíblia uma leitura salutar a fazer sobre esses pontos, sem se envolver com a abordagem dessa teologia.

Este texto não busca dar audiência a essa doutrina, não porque não julgue importante refutá-la, mas porque se preocupa em expor o assunto tendo espaço suficiente para que o leitor faça as devidas ponderações tendo uma fonte segura e expositiva em que se basear quando reflete sobre a vida cristã, do ponto de vista do contentamento que é segundo a piedade. Esta é a única razão aqui para que se evite o tema, algo que pode ser feito em outra oportunidade, querendo o Senhor nos permitir.

O texto bíblico proposto, 1 Timóteo 6.6, encontra-se em uma seção dedicada ao aconselhamento do apóstolo sobre aos falsos mestres ao jovem ministro Timóteo. Nessa seção da carta, Paulo admoesta Timóteo a não permitir a influência de falsos ensinos na igreja de Cristo (v.3), condenando veemente a conduta daqueles que assim procedem, afirmando que os mesmos o fazem por motivos interesseiros (vv.4-5), além do quê, fazem uso indevido da piedade, transmutando seus efeitos benéficos em prol do lucro, algo totalmente indevido, da perspectiva da objetividade do Evangelho. O texto que nos propomos a refletir tem sua condição associada ao correto emprego da piedade, onde o apóstolo defende que não é possível pensar em piedade sem considerar o contentamento, uma vez que esse se refere ao cuidado paternal do Senhor, que cuida dos seus, a despeito das situações adversas. No texto subsequente (v.7), o apóstolo manifesta a condição que somos introduzidos nesse mundo, ou seja, viemos sem nada e naturalmente não levaremos absolutamente nada físico para onde vamos, seja para a recompensa, seja para a condenação. O verso 8 realça a disposição de todo crente genuíno a esse contentamento, fica claro aqui a satisfação em fazer parte do propósito divino, ainda que isso custe algumas restrições, o cristão deve ser dar por satisfeito, entendendo que essa é a vontade de Deus, que nada o impropera, mas que o supre em suas necessidades mais básicas no desempenho da obra do Senhor. Finalizando o apóstolo demonstra a condição daqueles que desejam o dinheiro e o lucro, não somente aqueles que são chamados ao ministério, mas também traça alguns princípios gerais que acometem tais pessoas (v.9), terminando com uma conclusão lógica e esperada de tal empreendimento, havendo até mesmo muitos que não mais mantinham sua fé e estavam, consequentemente, desviados do evangelho, em razão da cobiça.

A palavra que o apóstolo utiliza aqui em 1 Timóteo 6.6 para piedade é εὐσέβεια que é apropriadamente traduzida por piedade. Na versão Revista e Atualizada a palavra piedade aparece em 1 Timóteo 9 vezes (2.2; 3.16; 4.7; 4.8; 5.4; 6.3; 6.5; 6.6; 6.11), sendo que apenas em 4.8 εὐσέβεια reaparece, num contexto onde Paulo defende que a piedade é condutora e fiadora de promessas reais e certas.

É notório o contraste entre a prática mantida pelos enganadores e embusteiros quanto ao evangelho e a prática do genuíno ministro de Cristo quanto ao mesmo. Enquanto que os enganadores fazem uso do rebanho, usufruindo deles sua manutenção nababesca, o genuíno ministro de Cristo, empreende seu ministério na piedade e contentamento. Esse contraste permite ao observador medir o nível de interesse das duas classes propostas, tendo o exemplo de verdadeiro ministro na pessoa do próprio apóstolo, que uma vez que também se afadigava a esse evangelho, podia admoestar a todos que se achegam a esse ofício qual deveria ser a conduta dos novos ministros.

Quando o apóstolo considera a piedade como fonte de lucro tem em vista não somente as virtudes que esse tipo de vida proporciona, mas também nos conduz a considerarmos os efeitos de uma vida que tem a piedade como padrão axiomático para todo cristão. Nenhum cristão genuíno deve ter outra pretensão, com relação à objetividade de sua vida que não seja a piedade como referência. Porém, os enganadores pérfidos estão mais interessados no lucro econômico do que esse estilo de vida pode proporcionar.

Não é de hoje que a religião tem sido utilizada de modo a garantir a lucratividade. Já nas páginas das Escrituras temos conhecimento de homens como os filhos do sacerdote Eli, que faziam uso das ofertas consagradas pelo povo de maneira reprovável (2 Sm 2.12-17) e Simão, mágico, que tentava conseguir o dom do Espírito Santo de modo a usufruir do mesmo favoravelmente (At. 8.9-13). Posteriormente, a igreja de Roma se favoreceu da ignorância do povo a fim de lucrar com indulgências, penitências e outras superstições que em troca de uma obediência proposta, buscavam algum favor divino. Papas e prelados desse segmento vivem os frutos desse disparate até os dias de hoje, desconsiderando a pobreza de muitos de seus seguidores e vivendo contrário a aquilo que se é exigido nas Escrituras. Os protestantes por sua vez são, talvez, os responsáveis pelas maiores distorções a esse respeito. Afinal a teologia da prosperidade é embrionária de suas fileiras e não de seitas mais heréticas, que nunca desenvolveram tal conceito anómalo.

A questão que envolve a teologia da prosperidade é mais complexa do que se nos é permitido nossa análise, tão parcamente limitada aqui. Tem a ver com erros exegéticos grosseiros, mas também faz uso da tradição protestante, como o conceito de providência e eleição. Alguns o relacionam ao conceito proposto nos modelos econômicos que foram desenvolvidos em países protestantes como o capitalismo, além de uma enormidade de falsas expectativas blasfêmicas que obscurecem o real sentido do cuidado divino com Seus eleitos. Seja como for, é certo que muito do que se propõe por tal teologia está longe de ser o ensino real fornecido pelas Escrituras.

O texto então mostra um conceito mais elevado da visão referente ao cuidado divino. O lucro aqui é visto com um benefício, sobretudo espiritual e não pertencente ao merecimento dessa época. Tem, como tal, uma conotação graciosa, sem mérito, sem pretensão. Fia-se na misericórdia e no cuidado divino, é antes de tudo a efetuação da benevolência de um Deus santo que nos alcança sem nenhum favor próprio existente em nós mesmos. Isso sim é lucrativo, pois vê a vida como a obra empreendida por um Deus santo que nos resgata da condenação, aproximando-nos de Sua comunhão paternal.

A piedade nos é garantia de padrão específico da vida daqueles que já não mais veem essa vida como pertencentes a si próprios. Suas vidas já não mais lhe pertencem, de modo que veem as conquistas, as vitórias de si próprios como a manifestação do favor divino, que bondosamente os alcança sem nenhum merecimento, apenas porque Deus quis infundir tais bênçãos, de maneira soberana e voluntária, não havendo nada que condicione os tais para tão grandes benefícios. A piedade genuína é um padrão vivencial experimentado por outros santos do passado e mais claramente manifestado na própria vida do Filho de Deus, padrão único e absoluto desse povo que entende a vida como algo a glorificar a Deus e não como algo que atinge interesses transitórios. Partindo desse entendimento, toda e qualquer cosmovisão que despreze esses conceitos revelacionais, são, por assim dizer, espúrios. Mesmo o aclamado “sonho americano” ou a propensa teologia da prosperidade, não fazem jus ao legado escriturístico, que sem dúvida, expande a ideia da doação e da entrega do crente a conceitos muito maiores aos que vemos nas cosmovisões empreendidas por muitos grupos protestantes hoje em dia.

Finalmente entendo que o contentamento não é uma condição muito cômoda a presente condição humana neste mundo. Não somos havidos por conceitos que nos rebaixem a níveis de sujeição absoluta, como é o caso aqui. Somos, por natureza, inclinados a expectativas superiores que dão conta de nossa capacidade acima das demais, do nosso bem desejado, de condições que nos fazem sonhar com objetivos rentáveis e acalentadores. O contentamento caminha na contramão de tudo isso. Ele é humilhante para alguém que espera tanto de si mesmo. Que deseja sobressair-se em um mundo de iguais, que deseja o status quo mais adequado e confortável. Grande parte das frustrações ocorridas hoje tem como fonte o descontentamento com algo que não se conseguiu alcançar, ou seja, tem a ver justamente com o conceito contrário daquilo que nos propõe o apóstolo aqui. Muitos, mesmo cristãos, estão frustrados por não terem alcançado algo, por não terem o devido reconhecimento, mostrando claramente que não entenderem o conceito defendido pelo apóstolo.

Se contentar com o que tem não é a mesmo que desistir. Muito pelo contrário, tem a ver com a sujeição ao plano eterno de Deus, que nos garante sua assistência misericordiosa, nos livrando das frustrações, mas trabalhando a dor, a pobreza, a doença e uma série de circunstâncias que devemos viver, mesmo que não achemos a melhor escolha para nós. Deus nos ensina a agradecê-lo por tudo o que estamos vivendo, isso sob qualquer situação. Ele nos mostra que não deveríamos ousar perguntar o porquê das razões que Ele determinou para nós. Se Ele assim o quis, certamente é o melhor. Não busquemos outro sentimento a não ser o contentamento que é derivado de uma vida piedosa. Nada tem mais poder do que um crente que aceita a graça de Deus para com sua vida. Em dias onde a cobiça o desejo, as motivações de tantos são tão prementes, os verdadeiros crentes anseiam fazer, justamente aquilo que o Senhor designou. Que seja essa a nossa real intenção nesses dias, que ao invés de buscarmos contentamento em nossas realizações o busquemos nos grandes feitos do nosso Deus, que realiza Sua obra em nós de maneira sábia e soberana. Deus nos ajude a compreender seus planos a nós quanto a este particular.










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